A tradição precisa ser compreendida e vivida para que tenha
sentido e possa nos auxiliar em alguma coisa. Elas, as tradições, são
importantes, sim, para que se preservem alguns costumes e sejam lembrados e
fortalecidos alguns valores.
Uma das tradições que o cristianismo lembra na Semana Santa,
e que repetimos esta noite, é o Lava-pés. Jesus, que já havia mostrado a seus
amigos que tinha poderes, com muitos milagres realizados em sua caminhada, antes
da ceia, lavou os pés dos seus amigos.
Antes de falarmos do significado desse gesto, façamos uma
rápida reflexão sobre o contexto da situação, começando pelas pessoas que Jesus
havia escolhido para seus seguidores, seus amigos. A grosso modo, olhando de
fora, qualquer um poderia dizer que faltou critérios na seleção. Entre os amigos
de Jesus havia gente ambiciosa, valentões, incrédulos, etc. Pedro era
destemido, vivia armado e até agrediu um guarda na hora da prisão do mestre.
Judas entregou Jesus por que esperava que ele aplicasse seus poderes contra os
que o seguiam e que eles tomassem o poder. Tomé só acreditava no que via.
Por que lavar os pés? Se eles fariam uma refeição, não seria
mais coerente lavar as mãos?
Não! O importante naquele momento era lavar os pés, pois
Jesus não queria dar uma lição de higiene, era bem outra a sua mensagem. Para compreendê-la
é preciso que tentemos compreender o que significava para aquele povo uma bacia
com água para lavar os pés.
As pessoas mais antigas da nossa comunidade e aqueles que
trabalharam na lavoura devem lembrar o quanto era restaurador lavar os pés
depois de uma jornada de trabalho, com uma enxada, limpando um milharal, calçados
com um par de tamancas (Para quem não sabe, tamanca era um chinelo feito com
sola de madeira e uma biqueira de couro.).
Pois na região onde Jesus e seus seguidores viviam, as
pessoas caminhavam muito durante o dia, num terreno arenoso e seco, calçados
não com tamancas, mas com sandálias feitas com tiras de couro, que deixavam os
pés totalmente expostos à poeira. Logo, se alguém quisesse ser gentil com quem chegasse
em sua casa, bastava lhe oferecer uma bacia com água para tirar a poeira dos
pés. Quem trazia a vasilha com água e em alguns casos até lavava os pés do
visitante, não era o dono da casa, mas os seus serviçais. Era um trabalho
humilde e uns até diriam humilhante.
E o que Jesus, aquele que fez milagres e que criou enorme
expectativa em seus seguidores, fez naquela noite? O que ele quis mostrar aos
apóstolos com aquele gesto?
O mesmo Jesus que expulsou os vendilhões do templo, o mesmo
Jesus que denunciou os desmandos das autoridades, civis e religiosas, mostrou
naquele momento, no Lava-pés, que não basta ter coragem e desprendimento, é
preciso também ter humildade.
Como no tempo dos apóstolos, vivemos em uma sociedade
ambiciosa, discriminatória e individualista. E o cristianismo, talvez por
apenas repetir as tradições, sem refletir suficientemente sobre elas, também está
inserido nesse contexto. Temos até Teologia da Prosperidade, que leva as pessoas
a pensarem que crendo em Deus, necessariamente, deixarão de ter problemas.
Irmãos e irmãs em Cristo, minha pretensão com esta meditação
nesta Quinta-feira Santa é chama-los a uma reflexão profunda sobre como temos
agido com relação ao que Cristo ensinou e ensina ainda hoje. Pedro negou Cristo
por três vezes, mas depois dedicou toda a sua vida pela causa do mestre,
propagando a Boa Nova. Tivesse ele firmado pé na sua teimosia, sem levar
desaforos para casa, certamente não teria contribuído da forma como o fez pelo
cristianismo.
A religião cristã vive um momento muito delicado e nós da
Comunhão Anglicana estamos inseridos nessa situação. Temos visto muitas
desavenças e cismas provocados pela falta de humildade de pessoas que, como
nós, estão neste momento praticando o Lava-pés.
É preciso que cada um de nós olhe para dentro de si mesmo e
tentemos descobrir e destruir a soberba que nos tem afastado de Jesus e dos
nossos irmãos e irmãs. Se não assimilarmos a verdadeira mensagem do Lava-pés,
nunca estaremos prontos para participarmos da Santa Ceia e continuaremos
brigando por picuinhas e nos calando diante dos desmando deste mundo.
Que o gesto de Jesus no Lava-pés, repetido em todos os confins
do planeta, não seja apenas uma encenação bonita, mas realmente nos toque o coração
e possamos, com humildade, nos colocarmos diante de Deus com o desejo sincero
de contribuir para que a Páscoa represente, para tanta gente descrente, muito
mais que um dia repleto de chocolates e guloseimas. Amém!
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